Wednesday, December 6, 2017

II Bienal de Pintura - Critérios curatoriais


A função de uma curadoria é definir e conservar um conjunto de obras para um acervo ou exposição e assumir as responsabilidades institucionais decorrentes. O curador goza de plena liberdade para definir essas obras, assim como o artista para fazer seus trabalhos... não é bem assim... ambos estão condicionados pela linguagem e regras do circuito de arte. Curadorias de museus costumam ser "avalizadas pelo conselho": representantes do mercado. O curador precisa atender as expectativas do sistema para se tornar relevante, os artistas idem. São duas profissões muito parecidas, do mesmo lado do balcão, vamos nos ater agora à primeira.

Algumas regras nada consensuais sobre curadorias:

1) Um curador não pode ser artista. Situação mais tolerada na Europa, menos no Brasil e menos ainda nos Estados Unidos. Os mais maldosos dizem que o curador/artista faz reuniões em instituições com seu portfólio embaixo do braço. Não se compreende bem a razão deste preconceito, talvez um certo ciúme de uma pessoa que ataca em duas frentes, a pose de artista no pedestal do curador, ou talvez a falta de foco na
Obra de Adinolfi (foto Paula Andrade)
carreira gere desconfiança sobre sua relevância em ambos os lados. Na Casa de Rembrandt em Amsterdam, vemos que ele tinha um acervo na entrada de sua casa onde expunha e comercializava obras de outros artistas. Ele morreu pobre, mas isto é outra história. O MAM tinha um programa de curadoria de artistas, em sua época mais pujante no início da década passada. Existe uma sub-regra: se o curador for artista, não deve incluir sua própria obra na exposição. O colecionador Miguel Chaia questiona esta regra e recomenda que o artista curador eventualmente inclua a si mesmo.

2) Um curador não pode selecionar obras vindas de seu acervo particular. Isto é visto quase como um escândalo, seria conflito de interesses, porque sua autoridade deve tratar de forma isenta as tendências estéticas mais relevantes. Sabendo que as escolhas inevitavelmente vão valorizar as obras, não convém dar visibilidade ao seu acervo pessoal. Bem, se não pode expor as obras de sua propriedade, pode expor mais discretamente os artistas presentes em sua coleção, que em tese é privativa. Curiosamente ouvi o crítico de arte Alberto Tassinari dizer que não colecionava arte, porque segundo ele seria inconveniente um crítico colecionar, ja que perderia sua plena isenção de análise: muito rigoroso comportamento. Ciente deste dogma, e procurando ampliar a liberdade curatorial, optei por incluir obra de meu acervo pessoal na exposição coletiva Pintura versus Fotografia no Paço das Artes em 2004, cujo catálogo elucida este fato nas fichas técnicas, com total transparência.

3) Um curador deve evitar convidar apenas seus amigos para expor. Ja me acusaram disto. Que curador nunca foi alvo desta alfinetada? Respondi: "Vou convidar quem? Meus inimigos?". O modo mais puro, e irreal, seria convidar nem amigos, nem inimigos, apenas pessoas sem relação pessoal. Só que nas panelas do sistema de arte genuínas amizades são formadas e um curador não pode preterir um relevante amigo, privando o público de sua magnífica obra. O artista Caetano de Almeida fez uma curadoria muito interessante no MAM em 2003 chamada Meus Amigos: ele colocou o maior número possível de artistas, preenchendo todos os espaços da sala e saturando as paredes. 

4) Um curador não deve pegar apenas artistas de galerias. "Vou pegar de onde?" questionou Tadeu Chiarelli certa vez, sinalizando os eventuais constrangimentos de um curador de alto nível em prospectar obras em ateliers. Este ponto é notável, a estreita relação de museus e galerias, ou mesmo de bienais e galerias. Pelo caráter seletivo das curadorias privilegia-se muito artistas de notória reputação, o que invariavelmente são representados por grandes galerias. Exposições de "mapeamento", como o Panorama de Arte do MAM costumam ter 95% de artistas de galeria e uns 5% de independentes para dar um certo frescor à exposição. A primeira Bienal de Pintura foi feita dentro de uma galeria, a Virgílio, em 2015, incluindo alguns artistas da própria. Ou seja, por um lado foi uma curadoria temerária, por outro traduziu fielmente e radicalizou as práticas recorrentes do circuito.

5) Curador não faz venda. Imagina se fizesse. O que eles vendem são textos e exposições inteiras para patrocinadores. Curadores compram arte pelos museus, negociam valores, o que não é muito diferente de vender. Em alguns casos os consultores de coleções particulares, que atuam na prática como curadores de acervos, levam comissões das galerias.

6) Um curador não deve selecionar um parente para exposição. Isto seria muito improvável e suspeito. Imagine escolher uma tia para expor. Por acaso nos corredores da ECA parecia que faziam isto anos atrás, com mostras de quinta categoria. A menos que o herdeiro de um grande artista resolvesse resgatar a obra do falecido pai... realmente muito improvável, filhos de artistas não costumam ter mínimas capacidades curatoriais, e um curador novato não agregaria o valor que o pai mereceria. Uma vez eu fiz uma curadoria chamada O Marchand e a Namorada, na Galeria Favo em 2006, eu era o curador, o marchand, o artista e a outra artista era minha então companheira, a portuguesa Catia Morais.

7) Um curador não deve selecionar sempre os mesmos artistas e as Bienais não devem ficar repetindo os mesmos artistas. Esqueça estas regras. Muitas vezes o artista precisa ser insistentemente veiculado pelos curadores, para que mais pessoas conheçam sua brilhante obra, mesmo que outros artistas permaneçam desconhecidos: não se pode culpar os curadores pela falta de visibilidade de alguns artistas. Cabe aos artistas se projetarem nas carreiras e fazerem frente à feroz concorrência e amenizar o excessivo protagonismo dos curadores.

Obra de Laura Beatriz
8) O curador só pode acolher artistas cuja produção é coerente e reconhecida. Verdade. Observa-se o conjunto da obra para buscar a coerência da linguagem, a maturidade dos conceitos e a pertinência do estilo dentro da arte contemporânea. O reconhecimento do artista é simples de conferir, basta olhar o currículo artístico, documento que atesta o compromisso com o meio. Este compromisso é importante porque assim como artistas querem entrar para a história da arte os curadores também, não se pode escolher um artista aventureiro e ocasional para uma Bienal. O meio da arte é muito competitivo com artistas de qualidade e impressionantes currículos. Uma vez pedi educadamente o CV de um artista, ele se ofendeu. Este tipo de reação queima o filme.

9) Justificar os artistas com argumentos adicionais e atraentes. Uma vez observada a coerência da obra e sua reputação agora é hora de engrossar o caldo com um texto que faça outras considerações procurando encaixar o artista na história da arte ou explicar o que há de interessante em sua obra, dando um ar científico para o texto.

A II Bienal de Pintura acontece dentro do Estaleiro Oficina administrado coincidentemente pelo curador da exposição. Pretendia-se que a II Bienal fosse em um local tão nobre quanto a Galeria Virgilio, por outro lado fizemos o que foi possível, conseguimos manter a regularidade da mostra a cada dois anos, e aproveitamos para desfrutar de um agradável e informal ambiente de oficina. Na próxima edição será convidado um curador independente que ja está sendo contatado.

Sobre os artistas.

Alexandre Ignácio Alves era meu colega de sala da FAAP, portanto somos amigos há mais de 20 anos. Sua técnica é muito refinada e lembra Daniel Senise e Sergio Fingerman. Suas pinturas de tons sóbrios valorizam texturas em composições que sugerem o desgaste do tempo, ou registros de conhecimentos muito antigos. Seu estilo tende ao conservador, o que nos dias de hoje é um diferencial notável.

Dalia Rosenthal trás o toque da fotografia na II Bienal de Pintura, a exposição pretende apresentar uma visão alargada de pintura e contemplar outras técnicas bidimensionais. Suas fotografias são abstratas e ultrapassam o limite do compreensível para um espectador leigo, exigindo assim algum calejamento para a apreciação. É interessante que a arte contemporânea exija algo do observador e não seja apenas de fácil digestão.

Pintura de HD Dimantas
Eduardo Verderame é um artista muito atuante tanto no circuito oficial como no alternativo, estudioso, tem uma famosa série de desenhos de igrejas, instalações, esculturas e composições bidimensionais em vinil adesivo, sob clara influência das técnicas de Regina Silveira, com quem trabalha há mais de 20 anos. Antigo amigo, ja participou de outras curadorias minhas. O espaço da exposição era atelier dele, e antes foi de Túlio Tavares.

Maurício Adinolfi é um conhecido artista representado pela Galeria Pilar, com extensa obra de pinturas e tem feito trabalhos de intervenção artística e antropológica com barcos de pescadores e barqueiros do norte, o que tem muito a ver com o Estaleiro Oficina. Ele foi artista da Galeria Favo, de propriedade do curador, em 2006. A obra exposta é de meu acervo pessoal.

HD Dimantas é um artista multimidia que foi selecionado para a mostra porque na semana de inauguração ele postou uma bonita pintura no Facebook. Como a exposição precisava de mais alguém de fora do acervo particular e já existia uma clara afinidade ideológica ele foi convidado. Suas pinturas são muito interessantes com aguçado estudo de cores, lembrando a fusão cromática impressionista, ou caleidoscópios e alguma influência naif.

Laurabeatriz é minha sogra. Não exatamente... mas eu queria ter escrito isto no texto. Ela é mãe da minha eterna namorada, a arquiteta Maria Rosa Almeida. Sua pintura adota uma técnica de muita leveza, cores vivas, mas com uma suavidade e transparência elegante que lembra Volpi. Mostra temas de paisagens e uma linguagem próxima a da arte naif, cujo estilo popular erudito interessa ao curador. Seu currículo de exposições é excelente e sua obra é coerente. Tecnicamente sua presença na Bienal é inquestionável.

Compositores de RR no Paço Imperial, RJ
Ricardo Ramalho mostra uma das suas séries mais relevantes, trabalhos antigos que ele considera muito atuais e que pretende retomar, da série Compositores, de 20 anos atrás. Tratam-se de quadros de peças giratórias que funcionam como pixels onde o público pode configurar e criar padrões. As obras foram premiadas no Anual da Faap em 1997 participaram de várias exposições, incluindo uma coletiva no Paço Imperial no Rio de Janeiro sob organização do professor Nelson Leirner.

Nesta curadoria temos apenas sete artistas, boa parte deles do acervo pessoal do curador que também é artista: duas regras já quebradas. O curador incluiu trabalhos de sua própria autoria na exposição: terceira regra quebrada. Uma das artistas é "sogra" do curador: quarta regra quebrada. Existem laços de amizade: quinta quebra. O curador pretende vender a maioria das obras: sexta quebra. Não existem argumentos muito elaborados para a seleção destes artistas: sétima. Alguns artistas estavam na Bienal anterior: oitava. Somente uma regra está sendo cumprida: a da coerência e reconhecimento dos artistas, afinal acredito e recomendo cada um deles.

Ricardo Ramalho

Serviço:
II Bienal de Pintura
curadoria Ricardo Ramalho

com
Alexandre Ignácio Alves
Dalia Rosenthal
Eduardo Verderame
HD Dimantas
Maurício Adinolfi
Laurabeatriz
Ricardo Ramalho.

de 16 de Dezembro de 2017 à 16 de Janeiro de 2018
local: Estaleiro Oficina, Rua Tomas Catunda, 7, casa 2, Vila Anglo, São Paulo
visitação de segunda a sexta das 14 às 18 horas ou com hora marcada.
(recesso de final de ano de 28 de dezembro a 8 de janeiro)

Mais informações artistaramalho@gmail.com

Monday, December 4, 2017

Modelo Romero Britto de fazer negócio e porque o criticam tanto

Pintura de Romero Britto
Vamos falar sobre o fantástico modelo de negócio do ícone Romero Britto, mas antes algo menos interessante: porque o criticam tanto? A  principal razão é seu envolvimento no seletivo circuito de arte (nulo) e a razão secundária é seu estilo pessoal. 

Romero Britto não precisa de galerias, nem de curadores, nem de museus, nem de críticos, e muito menos dos colecionadores de "arte contemporânea", e menos ainda das panelas de artistas bajuladores deste mesmo circuito. Ou seja, não sobra ninguém que o defenda no "mainstream" da arte. Exceto eu. Se ele não precisa de ninguém deste meio é natural que o meio não precise dele. O artista dificilmente participará da Bienal de São Paulo, ou da Bienal de Veneza, provavelmente não será incorporado ao acervo do Museu de Arte Moderna. Seu currículo tem obviamente muitas exposições em galerias e museus, mas em geral museus e galerias de segunda categoria (desculpe, não quero desmerecer o CV do artista e 90% das instituições que formam o circuito expandido, é uma categoria fundamental para fazer chegar a arte a mais pessoas). Sua posição no circuito especial não é relevante para ele, ja que possui um circuito próprio. Niki de Saint Phalle fez exposição na Pinacoteca de São Paulo, Romero Britto talvez tenha dificuldade. (A gestão atual do MASP pode se interessar). As obras coloridas de Niki e Romero, temos de reconhecer, têm bastante afinidade, no uso de cores chapadas, temas festivos e composições alegóricas. Por que Niki pode, e Romero não?
Escultura de Niki de Saint Phalle
Porque a artista francesa tem um longo currículo de interlocução com o circuito de arte, obras provocativas, conceituais, que vão desde o cinema até a arquitetura, passando por pintura, desenho, escultura e arte pública. Sua obras mais alegres, aparentemente inocentes, surgem em meio uma carreira muito rica de composições inquietantes em muitos meios e muitas instituições. Ja Romero Britto, sem querer diminuir o artista mais uma vez, tem como pilar de sua produção as pinturas decorativas conservadoras (linha de ação aliás usada pela maioria dos pintores de arte contemporânea).


A razão secundária pela qual o criticam tanto é seu perfil milionário e brega. Os católicos nutrem desconfiança de artistas milionários, se for brega então a coisa fica difícil de engolir. Aqueles paletós estilo Elton John, o cabelo pixaim sem corte, o corpinho roliço, sua proximidade com celebridades e sua zero representatividade no circuito de elite fazem dele uma figura não muito preferida pelo jogo de tráfico de influências e vaidades da arte. O fato de estar radicado nos Estados Unidos complica mais ainda sua aceitação no meio provinciano paulistano. Ele sofre preconceito, não há dúvida, é carta fora do baralho. Uma carta dourada. 

Neste percurso Romero Brito não atingirá uma cotação de Bia Milhazes, não haverá especulação de coleções de museus, textos e galerias em torno dele, nem precisa, ele já é muito próspero.

Agora vamos ao modelo de negócio. Tente fazer igual e fique rico.

1) Pinte quadros bonitos: algo incomun na arte contemporânea. Apresente pinturas com temas populares, de forte sedução visual e com estilo marcante.
2) Não perca tempo tentando construir um currículo para-inglês-ver. Tentar emplacar no circuito oficial é canseira. Puxa-saquismo não paga as contas. Evite a tricotagem dos artistas carentes. Faça exposições em espaços alternativos e chiques.
Minie Mouse versão Britto
3) Construa uma rede paralela de relacionamentos. Não é fácil isto hein?
4) Cobre um preço atraente pelos trabalhos, o importante é vender quantidade. Seu preço não vai evoluir muito, nem precisa.
5) Faça doações de suas obras a celebridades para ir emplacando nas mansões.
6) Quando começar a prosperar crie sua própria rede de lojas no mundo todo. 
7) Seja agressivo nos negócios, licencie seus desenhos para todo tipo de produto, venda posters sem dó, faça produtos, brinquedos, cadernos. Você vai concorrer com a própria Disney, mas depois vai fazer negócios com eles.
8) Contribua para instituições de caridade.

Como pode ver não é fácil fazer o que Britto faz. Caso queira explorar um artista de perfil parecido procure na internet Thomas Kinkade, uma autêntica fábrica de arte, com muitos colecionadores aficionados.

Em nosso meio pega bem falar mal de Romero Britto. Basta descer a lenha no artista e fazer pose de entendido que o pessoal curte. Espero que compreendam melhor seu perfil de atuação e inventem outros temas para malhar. Critica-lo é fácil porque ele está fora. Quero ver criticarem os cartolas do circuito contemporâneo: o rabo preso não deixa. Ser independente tem suas vantagens.

Um forte abraço e faça melhor!!! Sucesso!!! Ricardo Ramalho




Sunday, October 8, 2017

Como boicotar o Facebook? 6 dicas

O Facebook censura estátuas de Michelangelo e protege páginas de ódio. O poder daquela rede é excessivo, monstruoso e pouco fazem para promover valores humanistas de liberdade, conscientização, ética e educação. A Coca-Cola é santa perto do Facebook.

Estamos dependentes do Facebook para contatos com amigos, divulgações de negócios e postagens de expressão pessoal. Mas é possível dar um baque no Facebook para que corrijam o rumo de ganância.

1) Use mais o Twitter, é uma rede essencial para busca conteúdos e divulgação de qualquer assunto. É muito usada por chefes de estado, jornalistas, lideres espirituais, artistas, ativistas e todo tipo de pessoa. O Twitter será melhor explicado em outro post.

2) Não poste nada no seu perfil pessoal (a menos que seja via Twitter). Você pode manter alguma presença no Facebook fazendo postagens no Twitter que são automaticamente repostadas no Facebook.

3) Para manter a divulgação dos seus negócios no Face poste apenas nas suas páginas de negócios. (é uma forma de ganhar algum dinheiro com o Face ja que a rede ganha tanto dinheiro em cima da gente). Você pode postar um link do seu post de negócios no Twitter, assim ele automaticamente devolve no seu perfil do Face. A idéia é deixar seu perfil pessoal 100% via Twitter.

4) Não precisa ser um boicote eterno, experimente boicotar por um mês.

5) O Facebook tem interações muito intensas e vicia, no Twitter isto não acontece, acaba por ser uma rede mais saudável e que te dá mais tempo na vida. Seja feliz e próspero, lute pela sua comunidade, ganhe tempo na sua vida, descole-se daquela rede.

6) Se você estiver carente e querendo usar o Facebook chame amigos e amigas para sair, contate as pessoas via whatsapp, convide para sociais NA SUA CASA.

Não vale a pena ficar sufocado no Facebook para divulgar suas coisas, é uma vergonha o policiamento de conteúdos do Facebook, a empresa é a principal promotora de discurso de ódio no planeta, o atendimento ao usuário é praticamente inexistente. Pessoas fantásticas usam muito pouco as redes sociais. Muito sucesso e paz para você no mundo real.

Um abraço, Ricardo Ramalho

Thursday, July 27, 2017

Texto da exposição Inconveniente, de Paulo Ito











Inconveniente

O mundo da arte contemporânea tem fronteiras bem definidas, os artistas atuantes nas regiões de limte com outras artes acabam servindo para confirmar a existência destas divisões. Mesmo que o artista não acredite que existam separações entre artes, a separação será feita à sua revelia. Existem muitas formas de expressão artística: arte contemporânea, arte moderna, artesanato, arte naif, grafite, arte de rua, teatro, video, dança, fotografia, performance, música, literatura. O que distingue essas artes? Muita coisa: os públicos, os profissionais envolvidos, os meios de produção, os locais de exibição, as formas de registro, a catalogação, os objetos criados, os valores envolvidos. É improvável que um ator, por mais famoso que seja, pinte quadros e seja bem aceito por colecionadores investidores, ou que um músico saia dançando e impressione bailarinos profissionais, ou que um curador escolha dezenas de artistas diletantes para uma bienal, ou que um diretor de teatro seja chamado para organizar uma exposição relevante de fotografia. A cultura humana tem um nível de especialização muito grande, e isto pode ser positivo, quando percebemos o aprofundamento das pesquisas em suas respectivas áreas e a imensidão de cada um desses territórios.

Entretanto somente a arte contemporânea tem a inquietante capacidade de tomar para si o substantivo “arte” a tal ponto de julgar o que é arte e o que não é. A pretenção de definir a arte foi herdada do modernismo, havia uma cartilha modernista a ser seguida, e quem não seguia era carta fora do baralho. A arte acadêmica, por exemplo, deixou de ser considerada arte e passou a ser confundida com ilustração, vista como mera demonstração técnica, impessoal, artesanal e decorativa. Hoje em dia a arte acadêmica não é sequer tolerada nas faculdades de arte: o pósmodernismo passou a ser o novo acadêmico. O artesanato ainda desperta algum interesse da arte contemporânea por causa do mecanismo da apropriação de objetos fora de contexto, como no caso dos ready mades, e a valorização de estéticas primitivistas. A ilustração não goza da mesma tolerância, ela “não é arte” (ou, não seria arte) porque, segundo a argumentação, é acessório de um livro, o desenho de ilustração tem a interpretação da imagem condicionada ao texto, esvaziando assim a autonomia poética.

A credibilidade do grafite dentro do circuito de arte contemporânea só depende do empenho do artista em transmitir segurança e constância ao meio. O que está em jogo aqui não é a inclusão ou a exclusão de formas de expressão, e sim a adoção do jargão da arte, um vocabulário, que o artista pode usar ou não, conforme suas ambições. Se quer se reconhecido em certo meio, deixar contribuições, precisa dialogar com os agentes de consagração específica. É normal que cada segmento puxe a sardinha para si: o cinema é considerado “a soma de todas as artes”, a arquitetura é considerada “a grande arte”, até publicitários são considerados artistas, claro que essas conversas só funcionam dentro de cada um dos nichos.

Paulo Ito é um dos mais proeminentes grafiteiros de São Paulo, seus murais não passam desapercebidos, são abundantes, atingem a cena internacional, têm um traço de desenho bem característico e coerente, e as mensagens tem franco conteúdo político. Funcionam como cartoons que versam sobre temas como a vida urbana, o vazio dentro das pessoas e o capitalismo. Acontece que tradicionalmente a grande maioria dos grafiteiros não fazem obras políticas, nem de humor, por isso ele destoa um pouco da paisagem porque embora exista uma postura fora da lei em grafitar muros, a maioria dos grafites da cidade são peças de design gráfico, sem mensagem clara, sem conteúdo político, são siglas em letras estilizadas, personagens que funcionam como marca, grafismos abstratos e grandes estampas como quem diz “pintei aqui e isso é tudo”. Tradicionalmente a transgressão do grafite está mais no ato de grafitar do que na obra em si, tanto é que seu trabalho contestador é até visto com alguma resistência por alguns colegas. Curiosamente a arte política também é vista com desconfiança dentro do ambiente de arte contemporânea, porque pode ser tachada de panfletária (ou seja, tem uma finalidade outra que não a livre expressão estética) como se a poética ficasse condicionada pela mensagem. Talvez por isso Ito prefira ser categorizado como “artista de rua” e não grafiteiro, aliviando um pouco a pressão sobre a linguagem, posição que parece um certo preciosismo mas que demonstra preocupação com outros vocabulários. Assim sua produção dialoga tanto com a cena grafite que causa até um certo incômodo. Sinal que se impõe com força própria e contribui para alargar a discussão no meio.

Estamos tratando de uma exposição em galeria, então já está bem claro qual o tipo de arte que estamos rodeando. É importante ser relevante neste espaço. O mercado de arte tem linguagem, agenda e instituições próprias. Neste ambiente importa despertar o interesse de curadores, críticos, colecionadores, galeristas, produtores e público. O percurso da rua para a galeria não é comum, existem artistas que fizeram com êxito, como Keith Haring, Basquiat, Deco Farkas e Os Gêmeos. Não é uma transição natural e fácil. O mesmo vigor e disciplina da rua precisa ser empenhado no espaço museológico (a galeria também é um ambiente museológico). Só que conversões precisam ser feitas para as questões próprias do espaço. A escala de uma galeria é indoor, enquanto a rua é outdoor. Na galeria busca-se a contemplação demorada das obras, enquanto na rua a visualização dura segundos. Na rua existe o clichê da exuberância, e na galeria o clichê do minimalismo. Paulo Ito está inquieto sobre o percurso da pintura para dentro do cubo branco, já fez exposições anteriores bem distintas, passou por telas que lembravam histórias em quadrinhos, depois expos composições naturalistas longe do universo do grafite. Agora busca o meio termo para uma franca tradução de sua arte da cidade para a sala expositiva. “O artista é o intérprete do leitor” diz Nelson Leirner, revelando uma preocupação com seu público.

Existem artistas que se posicionam conscientemente nas zonas de transição entre artes e assim terão a chance de colaborar para a ampliação dos sistemas. Ja outros vão manter uma obra 100% em conformidade com a estética dominante, poderão ser rapidamente reconhecidos, mas o legado e ruídos para a história da arte talvez não sejam tão significativos. Os artistas, onde quer que atuem, desfrutam de uma relativa liberdade. Terão sempre que dialogar com as expectativas de linguagem do circuito e saber defender o trabalho com argumentos. Nesta carreira existe muita competição, não se pode deixar a peteca cair, a luta contra a decadência é uma batalha constante e ocupar a crista da onda periodicamente é vital. Quem não tem ambição desfruta de liberdade ainda maior. Os artistas mais ambiciosos não querem essa liberdade, querem prosperar, querem compromissos, reconhecimento, jogar as regras do jogo e vencer, muitas vezes dançando conforme a música no começo, e buscando mais arrojo com o passar da idade, após a consagração do nome. As manobras dos artistas no sistema de arte exigem critérios, pertinência, e coragem.

Ricardo Ramalho 27/06/2017

Exposição Inconveninte, Paulo Ito, A7ma Galeria, rua Harmonia 95B
Vernissage dia 27/7/2017 as 16 horas

Monday, May 8, 2017

Máximas

"Depois da arte vem os negócios de arte" 
(Andy Warhol)

"Depois dos negócios de arte vem a arte dos negócios" 

(Ricardo Ramalho)

Sunday, May 7, 2017

As virtudes da arte como hobby

RR, Série Compositores, 1997, Paço Imperial, RJ
Sempre fui um fervoroso defensor do sistema de arte profissional. Neste blog o estimado leitor poderá ler como defendo curadores, galeristas, artistas "executivos", colecionadores, instituições, circuito oficial, até as comissões de 50% eu defendo. Algumas rodas de artistas românticos acham que sou conservador. Ja me chamaram até de capitalista, logo eu... que buscava subverter o sistema por dentro. Quem me conhece de perto sabe que não sou conservador. Capitalista ainda estou tentando ser, para ver se faturo algum.

Eu estudei arte na FAAP onde a pegada do curso é bem mercadológica e logo depois fui abençoado e trabalhei 4 anos no departamento de curadoria do MAM, onde conheci as entranhas institucionalizantes do mercado em tenra idade. Depois fiz curadorias independentes e trabalhei em galerias. Assim minha visão sobre a arte sempre foi muito seca, pragmática, dura, sem conversinha. Eu era daqueles que poderia dizer "isto não é arte", ou pior "você não é artista, é um artesão". Só não falava isso para não magoar o interlocutor.

Eu não sou um artista que vive da minha arte. Ainda. Se fosse provavelmente este blog não existiria. O lema deste blog é "faça o que eu falo, mas não faça o que eu faço". Não tenho um volume de produção para fazer frente ao competitivo mercado de arte, no momento. Nelson Leirner ensinou na FAAP "para entrar no mercado o artista tem que ter produção". Com poucas obras, tenho feito poucas exposições. Com poucas exposições eu poderia ser duro comigo mesmo e sentenciar "não sou um artista". Mas sempre vou me considerar um artista atuante, sempre vou manter minha pose, e ainda acredito que no futuro posso me organizar melhor para impulsionar minha carreira. Como? Fazendo arte como hobby!

"Oi? Como assim? Arte como hobby? Ficou louco? Nenhum colecionador vai se interessar em investir, nenhum curador vai chamar um hobbista despretencioso. Quem pinta por hobby não é considerado" diria eu mesmo até há pouco tempo atrás.

Veja bem, é melhor se organizar para fazer arte por hobby do que enfrentar o desânimo de uma carreira precária. Em ambos os casos você vai precisar de um outro emprego do mesmo jeito. Fazendo como hobby é possível desapegar da "agenda de artista" e pintar por pintar. O meu problema pessoal é que sempre pintei para exposições com data certa. Raramente fui acumulando obras sem um compromisso de entregar para uma vernissage. Meu pragmatismo artístico era total. Então quando o ritmo de exposições diminuiu a produção quase parou. Ultimamente tenho feito uma exposição por ano, ou seja, pinto uma vez por ano. Isto não é legal.

O meu ganha-pão paralelo à arte sempre tirou meu tempo de dedicação à minha carreira artística. Quando entrei no MAM, logo depois de formado, pensava comigo "uau, estou no MAM", sempre que batia o cartão do ponto, dia após dia, sentia um orgulho imenso daquilo. Aprendia muito. O público tinha a nítida impressão que eu era relevante lá dentro. A parte chata era que rapidamente comecei a ver artistas mais jovens do que eu fazendo bem mais exposições, alguns em galerias, e outros mais jovens até expondo lá dentro no MAM. Lidei com isso pensando "bem... isto é natural, eles estão pintando horrores, e eu estou montando exposições no museu, eles fazem pose lá fora, eu faço aqui dentro, okay, vamos em frente".

Várias instituições depois, acabei ficando bem mais atuante nos bastidores do que no palco. É possível prosperar e ser muito feliz nos bastidores da arte: os curadores, os arquitetos, os grandes produtores, os marchands, são os verdadeiros cartolas, eles tem a chave do sistema, gozam de bastante prestígio e conseguem até exprimir criatividade e autoria. Nos bastidores eu estava no olho do furação, mesmo que minha arte apenas orbitasse o sistema a uma boa distância, eu era o gerente da parada. Só que nunca fui um árduo seguidor dessas carreiras técnicas, sempre procurei me ver mais como artista. A condição de artista marginal é até reconfortante, é uma categoria consagrada de artistas.

Hoje penso em evoluir, não trabalhar mais nos bastidores da cultura, continuarei sendo artista mas vou arrumar um ganha-pão longe da arte, um negócio mais conservador (sou bom nisso, simulações conservadoras), é muito improvável enriquecer na cultura. Nesta idade estou precisando enriquecer. Levar uma carreira pura de artista, é complicado demais, para mim, é solitário e demanda uma iniciativa absurda, tenho contas se acumulando. Arte como hobby é a minha dica do momento, para voltar a sorrir como artista, para uma produção maior do que a de hoje, para dar tempo ao tempo, e focar no meu novo empreendimento e quem sabe voltar a colecionar. Para ser sincero não acho interessante viver da arte, outros trabalhos ajudam a arejar a cabeça do artista. Não me faltam ambições artísticas, meu objetivo não é uma carreira passageira, é entrar para a história da arte. E como dizia o general Sun Tzu "a vitória ideal é obtida sem a batalha". E a consultoria de arte? Como vai ficar? Se alguém quiser pode me procurar, eu que não vou sair por aí vendendo este serviço. Menos pretensão e mais diversão na arte.

Sucesso!! Ricardo Ramalho