C3P0: um robô preocupado consigo mesmo |
Se a função da arte é perpetuar-se, onde ficam aquelas funções artísticas como produção de poéticas, transformação criativa da matéria e observação crítica do entorno? Em outros contextos estas são as tarefas primordiais: para os artistas românticos o importante é simplesmente fazer arte, a carreira é secundária, o mercado é desnecessário, exposições são opcionais. Entretanto este blog não é romântico, sempre defendeu o fazer artístico como profissão de engajamento administrativo no sistema de arte. O que define um artista não é sua produção, e sim o peso de sua assinatura conseguido na rede de espaços e pessoas que ele conquista. As obras dos artistas não tem qualquer relevância sem sua forma de atuação. Portanto a obra de arte nada mais é do que tela e tinta: não há um valor intrínseco que vá além da tela e da tinta, sem uma vigorosa atuação do artista sobre a Terra. Sem portifólio que impressione, sem um currículo de exposições que demonstre credibilidade, sem uma produção em quantidade suficiente, sem conceitos que se relacionem com a linguagem recorrente, sem relacionamentos pessoais, sem agenda, a arte não tem aplicação nenhuma.
O que me faz lembrar da terceira lei da robótica de Isaac Asimov:
- 3ª Lei: Um robô deve proteger sua própria existência desde que tal proteção não entre em conflito com a Primeira e/ou a Segunda Lei.
Deixemos a primeira e segunda lei para daqui a pouco, elas dizem respeito a função do robô como máquina protetora da humanidade (1ª lei) e máquina obediente (2ª lei). Dois atributos questionáveis nas artes: com frequência a arte desprotege, desestabiliza pensamentos fossilizados, incomoda, assusta e desobedece. Dizem que aprendemos mais com os erros do que com os acertos, assim a arte ensina mais quando induz ao erro do que à conformidade. Vamos retomar estas questões mais abaixo. A terceira lei da robótica tem paralelo com a função da arte: proteger sua própria existência. Se os museus acabarem o povo vai perder acesso às referências estéticas, históricas e o exercício da observação crítica e do posicionamento ético. Perdendo este público as galerias vão fechar, e os artistas passarão fome (mais ainda). Fechando outros templos das artes como teatros e bibliotecas teremos um abalo nas artes performáticas de atores, músicos, cenógrafos, maquiadores, bailarinos o que também abala a produção de cinema, literatura e TV. Sem que os interesses tenham pluralidade a ciência e suas aplicações serão restringidas. Vamos perder tecnologia e voltaremos a ser os homens das cavernas. Este cenário terrível de pobreza cultural faz lembrar o Afeganistão sob domínio taleban onde tudo isto era proibido, e a intolerância, a violência, a fome e o machismo prosperavam.
Se observarmos o circuito das artes como um sistema, uma máquina com peças específicas, talvez agora possamos resgatar a primeira e a segunda leis:
- 1ª Lei: Um robô não pode ferir um ser humano ou, por omissão, permitir que um ser humano sofra algum mal.
- 2ª Lei: Um robô deve obedecer as ordens que lhe sejam dadas por seres humanos, exceto nos casos em que tais ordens entrem em conflito com a Primeira Lei.
Vamos adaptar para as artes e ficamos assim:
- 1ª Lei: As artes não podem ferir um ser humano ou, por omissão, permitir que um ser humano sofra algum mal. Então as artes não podem se omitir perante a barbárie, sua omissão vai ferir a sociedade: onde não há cultura não há humanidade como exposto na defesa da terceira lei.
- 2ª Lei: As artes devem obedecer as ordens que lhe sejam dadas por seres humanos, exceto nos casos em que tais ordens entrem em conflito com a Primeira Lei.
Podemos aqui entender que "dar ordens às artes" significa criar, conceber, programar as artes livremente dentro de um processo criativo e crítico, assim o ser humano que "dá ordens às artes" são os próprios artistas (ou curadores, galeristas e produtores culturais), aceitar ordens que causem constrangimento às artes conflita com a 1ª lei por omissão, e a 3ª lei de manutenção.
Infelizmente as leis das robóticas são peça de ficção. Estamos vendo robôs nas mídias sociais manipulando pessoas e eleições, drones matando em escala industrial. Mesmo as leis que defendem as artes estão gradativamente sendo derrubadas. Expor nossos trabalhos criativos, cuidar de nossas produções e ampliar nossos acessos e contatos nunca foi tão importante como agora.
Ricardo Ramalho
31-5-19
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