Todo artista pode fazer o que quiser. Pode ser modernista, pode ser acadêmico, pode andar pelado, especialmente se tiver um corpinho bonito. Pode jogar areia na Bienal (literalmente), pode até não fazer nada e continuar sendo artista. Que maravilha! É assim mesmo? Que liberdade é essa? Só se for “livre como um taxi”, nas palavras de Millor Fernandes. O artista na verdade tem é que andar na linha, tem que pintar em série. E ai dele se não pintar em série. Tem que redigir um currículo de acordo com o padrão internacional de currículos de artistas contemporâneos: nome, formação, exposições individuais, exposições coletivas, obras em acervos e publicações. Se o currículo não for feito assim estará condenado ao rótulo do amadorismo. E o portfólio? Se não demonstrar uma coerência férrea entre as obras, nada feito. É preciso omitir o experimentalismo. Onde estão as fichas técnicas? Embalou as obras com o material adequado? Sabe defender sua obra? Sabe argumentar e dar tapinhas nas costas? Ou será que o artista é romântico e inseguro? Ele dialoga com os lobbies, ou se revolta contra eles? É quixotesco? Curte curadores? Cuidado com a resposta, hein?
A arte sempre teve fórmulas, no modernismo quem não entrava naquela onda estava frito. Quem não era futurista tinha que morrer. Hoje em dia a arte é mais permissiva, pode quase tudo, o que ficou conservador mesmo são os escritórios dos artistas, suas rotinas. “Depois da arte, vem os negócios de arte” (Andy Warhol).
Tulio Tavares urina em garrafas de wisky, garrafas pet e outras garrafinhas de vários formatos, fecha bem para não vazar e monta uma espécie de coleção, que chama honestamente de “mijos”. Não são de qualquer pessoas, são mijos do artista. Qualquer semelhança com a “merda de artista” não é mera coincidência. Piero Manzoni not dead: o odiado artista italiano defecou em latinhas, aquele que parecia não levar a arte a sério, tem afinal um discípulo na virada do século. Afinal qual o problema de seguir as regras do jogo? O artista é livre ou não? O artista tem a obrigação de contribuir para o sistema de arte. Pode jogar tinta na tela de qualquer jeito. Pode cortar a tela com faca. Pode até ser naif. Pode não fazer nada. Sim, pode tudo isso. Desde que em série. O artista tem que fazer “nada” repetidas vezes. Uma só garrafa de mijo não tem cabimento. Vinte garrafas de mijo sim, a arte fica bem melhor. Coerência, visão de mercado, poesia provocativa, visão crítica. O que mais querem de um artista?
Toda arte insólita exige coragem, mantém vivo o glamour da arte, a inquietação, a agressividade, o charme dos artistas. É preciso propor uma instabilidade, como quem faz um teste de estresse, como quem busca os limites, para que tudo se estabilize e possa avançar. A estagnação é a tumba de qualquer profissão. O que teria levado Manzoni a enlatar sua evacuação? A pressão modernista? A competição com outros artistas? A necessidade de propor algo marcante? O medo da marginalidade? Todas estas motivações não morreram. A pressão do mercado é enorme hoje em dia, os artistas competem entre si como se vivessem num ninho de cobras. O receituário modernista foi substituído pelo secretariado contabil. Na arte contemporânea vence quem tiver o escritório mais organizado. Pouco importa o que você faça como arte, mais uma vez. O que importa é a embalagem, a caixa de transporte com espuma, o seguro, o currículo, o “per diem”, a imortalidade nas coleções, a qualidade do coquetel, o copo com gelo. Por falar nisso, um brinde ao artista.
Ricardo Ramalho
Março 2015
Texto para o catálogo do artista,
doação dos Mijos ao Museu de Arte do Rio
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Bom artigo Ricardo!
ReplyDeleteGosto do estilo.
Obrigado pelo feedback meu amigo!! Um abraço!!
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